Depois de uma longa viagem de ônibus de 12 horas saindo de Agra, cheguei em Varanasi, uma das cidades que eu mais queria visitar na Índia, no início da manhã.
A primeira impressão foi que Varanasi era mais uma cidade suja, empoeirada e barulhenta como qualquer outra que visitei na Índia, e o tráfego era tão caótico, com motos, rick-shaws, tuk-tuks, carros, um monte de vacas, porcos e até macacos nas ruas.
A cidade, considerada uma das mais antigas do mundo, foi fundada cerca de 3000 anos atrás, e atrai pessoas de todos os lugares, especialmente hindus.
Eles acreditam que Varanasi é o lugar mais sagrado na Terra e foi fundada por Shiva (o Deus da Destruição e da Criação), e não por seres humanos.
Varanasi fica distante17 km do local onde Buda fez seu primeiro discurso, e onde o budismo foi criado.
Eu vim para Varanasi porque queria conhecer um dos principais locais religiosos do mundo, e ver os Sadhus, ou homens santos. Eles são reverenciados como representantes dos deuses na Terra. E também, eu vim para Varanasi para finalmente fazer um curso de meditação Vipassana de 10 dias.
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A Incomum e Inesperada Boas-vindas em Varanasi
Na estação de ônibus, eu negociei a corrida de tuk-tuk com um motorista que mal falava inglês, e que aparentava estar um pouco bêbado. Ele disse que sabia a localização do meu hotel, mas depois teve que pegar alguém no meio do caminho para explicar-lhe a localização correta.
Após cerca de 20 minutos, paramos em frente a um hospital… Estava confuso, mas ele confirmou que o hotel fica localizado atrás do hospital e tivemos que dar a volta.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele pegou minha mala e seguiu em direção ao hotel, mas uma pessoa nos sugeriu ir pelo outro lado pois o tuk-tuk podia parar perto da entrada do hotel.
Enquanto caminhávamos por um beco que tinha esgoto transbordando do chão, tenho que admitir, que me senti inseguro sobre o tipo de hotel que estava localizado em tal viela…
Quando dobramos um beco, ouvi uma mistura de choro, espasmos e canto, e quando olhei para trás vi várias mulheres vestidas com saris agachadas no chão, algumas pessoas de pé de frente pra elas, e no meio um corpo..
Dei uma olhada e vi que eles estavam cobrindo o corpo de uma idosa com tecidos brilhantes e dourados, e amarrando o corpo numa maca de bambu.
Uma mulher de cócoras no chão parecia estar chorando e cantando ao mesmo tempo estava sendo consolada por uma outra mulher, enquanto as pessoas de pé estavam todas olhando para o cadáver. E eu estava ali, espantando, paralisado e congelado no meio do beco.
E pensar que senão tivéssemos mudado nosso caminho, teria ficado cara a cara com um corpo na minha primeira hora em Varanasi.
E isso era só 7h45min! Como eu só podia fazer o check-in às 11h, deixei minha mala no hotel, e decidi voltar para assistir um pouco mais do extraordinário funeral.
A mulher tinha parado de chorar; um homem vestindo uma camisa branca estava no telefone, enquanto um adolescente passava de uma casa para outra com um pote de barro que uma mulher encheu de água.
Pra ser sincero, achei a cena super surreal, e um pouco triste e deprimente – as pessoas ali, de cócoras no chão em torno do cadáver, com esgoto correndo entre eles.
Fiquei um pouco mais, apenas observando, e quando levantaram o corpo, a mulher começou a chorar novamente, e uma outra jogou o pote de barro com água no chão.
As pessoas que transportavam o corpo cantavam “Deus é a verdade” em hindi, enquanto um homem jogava salgadinho de arroz no corpo.
Eles seguiram em marcha para o Rio Ganges, onde a cerimônia de cremação iria ocorrer, e ao passar pelas pessoas nas ruas, algumas faziam sinais religiosos com as mãos.
Decidi voltar para o hotel, porque estava me sentindo um pouco intrusivo, como um típico turista ocidental seguindo essas pessoas pelas ruas com uma câmera. Além disso, estava muito cansado e faminto, e precisava comer algo urgente.
O Sagrado Rio Ganges
Após tomar café da manhã e responder alguns emails, decidi dar uma caminhada na margem do rio.
O Rio Ganges, que corre pela Índia e Bangladesh, é adorado como a deusa Ganga no Hinduísmo, e é considerado o rio mais sagrado pelos hindus.
Hinduístas se banham em suas águas, prestam homenagem aos seus antepassados e deuses, oferecem flores e pétalas de rosa, colocam água em jarros de barro para usá-las em rituais, e também jogam as cinzas dos mortos no rio.
Apesar de Ganga ser considerado um dos cinco rios mais poluídos do mundo, é comum ver pessoas, indianos e também estrangeiros, tomando banho no rio, lavando roupas, saltando dos “ghats” (a escadaria de acesso ao rio), e orando na água.
Há alguns belos palácios e antigos fortes nas margens do rio, e depois de caminhar por cerca de 15min, passei por algumas das pessoas que carregavam o corpo.
Poucos passos depois, vi umas fogueiras, e quando vi os panos dourados espalhados pelo chão, não tive dúvidas que estava no local onde os corpos são queimados.
Estava super quente, e enquanto estava à procura de sombra, um homem que falava inglês com dificuldade começou a falar comigo.
Ele disse que era um “burning man” (cremador), e me apresentou seu irmão, que falava Inglês perfeitamente e pode me explicar tudo sobre o crematório à beira do Rio Ganges.
A Cerimônia de Cremação dos Corpos em Varanasi
Kailash, que se apresentou também como um cremador, me disse que sua família tem dois lugares diferentes às margens do rio, onde as cremações ocorrem.
No lugar onde estávamos, há três pontos diferentes para a cremação: um para os ricos (em uma plataforma redonda cimentada); um para pessoas de média renda (na areia); e outro para os pobres (em uma plataforma cimentada elevada); todos localizadas em frente ao rio.
Ele também me disse que o lugar é aberto 24 horas, e como a Índia é um país super quente e os corpos se decompõe muito rapidamente no calor, a família tem que trazer o corpo para ser cremado no prazo máximo de cinco a sete horas após a morte.
Indianos são super religiosos e acreditam que assim que eles fazem a cerimônia, a alma do(a) falecido(a) vai para o nirvana.
Kailash também me explicou o processo sobre a cerimônia de cremação dos corpos: quando uma pessoa morre, a família traz o corpo para a margem do rio, eles banham o corpo com água do rio para purificar a alma, enquanto isso, um membro da família raspa o cabelo, bigode ou barba, em respeito à pessoa que morreu.
O membro mais próximo da família também tem que tomar banho no rio, e vestir-se todo de branco, pois o branco é o símbolo da pureza. Depois, ele tem que comprar cerca de 360 kg de madeira para queimar o corpo.
O cadáver é colocado cuidadosamente sobre a pilha de madeira que foi preparado como uma cama na margem do rio e, em seguida, coberto com mais madeira.
Esse membro da família anda em torno do cadaver cinco vezes (representando os cinco elementos do hinduísmo) com uma tocha e, em seguida, acende a fogueira.
A cremação leva cerca de três a três horas e meia, e a família assisti e fica até o final.
Depois que Kailash se despediu, eu fiquei lá, assistindo um corpo sendo cremado. Eu vi um membro da família levantando um braço do cadáver com uma madeira pra poder ser queimado, enquanto os outros membros assistiam de pé proximo à fogueira; quando o pano branco que cobria cadáver se foi, os pés do cadáver foram revelados.
Confesso que achei chocante e perturbador ver o braço ainda em posição vertical sendo queimado, os pés pendurados na extremidade da fogueira, e os membros da família ajustando o corpo no fogo para que fosse completamente queimado.
Fiquei um pouco mais, sem saber exatamente o porquê… Talvez porque estava tão perplexo, talvez por causa da minha curiosidade mórbida, ou talvez porque eu não podia acreditar no que estava testemunhando… Provavelmente por causa de tudo isso.
Depois que o corpo está completamente queimado, o membro mais próximo da família joga um pote de barro cheio de água do rio Ganges sobre as cinzas como um último adeus ao falecido(a). As cinzas são então recolhidas e dispersas no rio pela família.
- Fotos e vídeos da cerimônia de cremação dos corpos não são permitidos, no entanto, enquanto eu estava falando com Kailash, uma cremação estava acontecendo, e você pode vê-la ao fundo.
Quando deixei Harischandra Ghat, o crematório, vi algumas pessoas trazendo outro corpo para ser cremado, outras limpando o cadáver de uma jovem mulher com água, e um rapaz raspando o cabelo.
Varanasi: a Cidade da Vida e da Morte
Com meu corpo coberto de cinzas, e minha mente conturbada, fiz todo o caminho de volta ao hotel.
A temperatura estava em torno de 39C, e as ruas de Varanasi estavam ainda mais movimentadas.
Durante essa caminhada, senti que Varanasi tem algo diferente dos outros lugares.
Das muitas casas e edifícios antigos que parecem que foram abandonados, destruídos, ou mesmo que podem desmoronar a qualquer momento; às ruas marrons cheias de buracos devido à construções; ao ar empoeirado que parece manter a cidade em uma eterna neblina… tudo isso combinado confere um ambiente místico e surreal à cidade.
Mas, ao mesmo tempo, as ruas são tão movimentadas, cheias de gente e de vida, que essa não pode ser uma cidade “destruída” (abandonada).
Eu acho que essa é a razão pela qual Varanasi é considerada a cidade da vida e da morte.
Com 80% da população da Índia pertencente à religião hindu, pessoas de todo o país trazem seus parentes para serem cremados em Varanasi.
Há até mesmo hospitais que oferecem quartos para pessoas passarem seus últimos dias aqui, porque morrer em Varanasi garante a entrada para o céu.
Ainda estou comovido com tudo o que vi esta manhã!
Para mim, Varanasi e, especialmente, a cerimônia de cremação dos corpos, foi uma dos coisas mais chocantes, perturbadoras, e ao mesmo tempo interessantes e espirituais que já vi.
Segundo a crença hindu, a destruição não é arbitrária, mas construtiva. Destruição também faz parte de uma nova criação, e todos os começos, necessitam e devem ter um fim, abrindo assim o caminho para mudanças benéficas.
Eu acho que é exatamente por isso que eu estou fazendo meu curso de meditação aqui em Varanasi.
Algumas das minhas crenças já estão morrendo, e é hora de criar novas.
Por todas as dores, dificuldades e prazeres que temos na vida, no final nosso corpo será destruído.
Seja enterrado, cremado num crematório, ou na beira do rio na frente de todo mundo como aqui em Varanasi, estamos passando apenas um tempo finito na Terra, e cabe a nós fazermos dele o melhor possível.
Namastê!
* Assista vídeo: A Extraordinária Cremação dos Corpos em Varanasi (legendas em português).
Planejando uma Viagem para Varanasi
Onde fica Varanasi?
Varanasi está localizada às margens do rio Ganges no estado de Uttar Pradesh, no norte da Ínida, 320 Km ao sudeste da capital, Lucknow, e 121 Km ao leste de Allahabad (veja mapa aqui).
Como chegar a Varanasi?
Você pode ir à Varanasi de ônibus, trem ou avião. Para comparar a passagem de trem ou ônibus, a melhor opção é procurar uma agencia de viagens, porem voce pode checar o horário dos trens no site da Indian Railways.
Já de avião, você pode usar o aeroporto internacional de Varanasi, localizado a cerca de uma hora da cidade. Algumas das companhias aéreas que operam voos pra lá são: Indigo, SpiceJet, Air India and Hahn Air.
Melhor época para visitar Varanasi?
A melhor época para visitar Varanasi é durante o inverno, outubro a março, quando as temperaturas estão mais moderadas, e também acontecem os festivais, como por exemplo o Diwali (Festival da Luz), e Ganga Festival.
Eu visitei Varanasi no final de Abril e fazia um calor insuportável (na casa dos 40C todos os dias).
Hotéis em Varanasi
O melhor lugar pra ficar em Varanasi é perto do Dasaswamedh Ghat, um dos principais ghats da cidade.
Aqui vai uma lista de alguns hotéis que eu recomendo:
- Luxo: Brijrama Palace
- Ótimo Custo x Benefício: Ganges Inn e Shivakash Guest House.
- Econômico: Marigold Guest House.
Custos da Viagem?
• Seguro de viagem de 5 meses pelo sudeste asiático: R$ 844 com a World Nomads.
• Uma noite no Rivera Palace: Rs 1700 (R$ 83)
• Duas noites no Ganges Inn Hotel: Rs 2000 (R$ 98)
• Ônibus de Agra para Varanasi: Rs 1850 (R$ 90)
• Passeio de barco no Rio Ganges: Rs 100 (R$ 5)
Passeios em Varanasi
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Adorei o seu relato, simplesmente fascinante. Já li e assisti muita coisa sobre Varanasi e mesmo assim me arrepiei várias vezes ao ler o seu post. Suas considerações finais são perfeitas, só cabe a nós utilizarmos o tempo finito na Terra para realizarmos o que acreditamos. Namastê!
Muito obrigado Fábio !!
Varanasi é simplesmente surreal. Confesso que sabia pouquíssimo sobre a cidade, mas depois do que vi, fiquei super curioso para aprender ainda mais.
Grande abraço.
Namastê !
Muito interessante o relato, e achei muito corajoso de sua parte não só assistir a todo o processo de cremação, mas registrar as imagens. Que experiência você teve, obrigada por compartilhar.
Somos muito presos à matéria e acho que por isso nos chocamos ao ver corpos mortos e muitas pessoas evitam ver o corpo de um ente querido. Aliás, fala-se muito pouco da morte, considerando que ela faz parte da vida de todos nós.
Obrigado você Marcia!
Tudo aconteceu muito rapido. Esse relato é de apenas minha primeira manhã em Varanasi…
Sim, somos muito presos à matéria, e, por isso, essa cremação é muito chocante para nós.
Grande abraço
Que experiência incrível! Muito bom post e detalhado.São as coincidências de tempo em viagem que nos fazem vivenciar esses momentos.
Obrigado Leo!
Verdade; e são esses momentos que enriquecem nossas viagens.
Abraço
Caraca cara! Que doideira! Achei muito interessante sua experiência! Como é incrível ver esta diferença cultural tão de perto! Incrível mesmo! Parabéns pelo post!
Obrigado Itamar!!
Essas diferenças culturais só nos enriquecem como pessoas 😉
Abraço
Caramba fiquei perplexa apenas ao ler seu relato e ver as fotos entâo imagino que ver tudo isso pessoalmente deve ser ainda mais forte n,. De qualquer forma com certeza é uma experiência a mais e diferente do que estamos acostumados, o que nos faz pensar.
Abraços
Oi Monique.
Obrigado !!
Pois é, imagina que vivi tudo isso no meu primeiro dia em Varanasi…
Uma experiência bem forte e marcante, que mexeu muito comigo.
O choque cultural nos enriquece muito, e nos faz refletir sobre nossos conceitos.
Grande abraço.